Presos tomam conta de mulher de 102 anos
19/09/14 07:00
Paula Sperb, de Folha de São Paulo
Filha de um fazendeiro de Pelotas (RS), Maria
Ribeiro da Silva Tavares deixou o pai de cabelo em pé quando decidiu gastar
toda a herança de viúva para levar presos de alta periculosidade para viver em
sua própria casa, ao lado do filho pequeno.
Maria já trabalhava como voluntária no Presídio
Central de Porto Alegre, quando perdeu o marido. Em 1936, aos 24 anos de idade,
conseguiu convencer a direção do local a dar abrigo a 36 presos.
No primeiro dia fora do presídio, antes de
iniciarem o trabalho que ela conseguiu para todos em obras da prefeitura, Maria
concedeu a eles um privilégio: eles poderiam visitar a família, desde que
voltassem à tarde. Nenhum deles fugiu.
O Patronato Lima Drumond, que hoje funciona em
parceria com o Estado, foi fundado por Maria seis anos mais tarde, com recursos
próprios e a ajuda dos detentos.
Hoje, 78 anos depois, a assistente social de 102
anos continua morando no local em que 63 homens cumprem pena do regime
semiaberto.
Dona Maria com o cuidador Roberto Sotello, em férias na lagoa dos Patos (RS) |
Aos 102 anos em 2013 |
A maioria deles tem entre 35 e 45 anos e foi
condenada por tráfico de drogas e homicídio. A taxa de fuga é considerada
baixa, em média uma por mês, principalmente porque não há grades nem celas no
local.
Doze anos atrás, Roberto Sotello era um dos
candidatos a viver no patronato. “A direção [da época] não me aceitou. Diziam
que eu era muito perigoso. Mas ela argumentou que a casa não era para os
santinhos”, lembra ele, que desde então atua como cuidador da idosa.
No último “veraneio”, como os gaúchos chamam as
férias de verão, ele levou Maria para acampar com sua família durante cinco
dias na lagoa dos Patos (RS). Mesmo de cadeira de rodas, ela tomou banho no
rio.
Quando Sotello não está por perto, os outros
“anjos”, como ela chama os presos, tomam conta de Maria.
O zelo não é de hoje. Os presos a protegem desde a
época em que ela era a única autorizada por eles a entrar na cadeia para mediar
rebeliões.
Em uma ocasião, ela levou os criminosos para
trabalhar na fazenda de uma amiga, entre eles um condenado por estrangular
várias mulheres. Durante a noite, ao sair do quarto, encontrou quatro presos
dormindo em frente ao aposento para protegê-la. O episódio foi relatado no
“Jornal do Brasil”, em 1974.
Atualmente, três detentos aguardam vaga no
patronato — estabelecimento que pode ser público ou privado e prevê cumprimento
de pena do regime semiaberto e aberto, além de atendimento aos egressos do
sistema penitenciário.
Uma das “receitas” para que a ressocialização seja
bem-sucedida é nunca exceder a capacidade de 76 vagas, diz a diretora-executiva
do patronato, Sirlei Hahn.
“A gente procura aceitar o preso com histórico
carcerário de trabalho, sem problemas disciplinares. Não interessa o crime ou a
pena, mas o histórico no sistema prisional. São merecedores”, afirma Hahn.
Prestes a completar 103 anos, em novembro, Maria
está lúcida, mas ouve mal e se locomove principalmente em cadeira de rodas.
“Ela se cobra da limitação física”, conta Carlos
Eduardo Aguirre, 57, filho adotivo de Maria. “Quando ela quer sair, ela sai.
Ela é atrevida”, completa Sotello, lembrando que Maria não perdeu nem a vaidade
com o passar dos anos. “Ela é nobre, gosta de estar bem arrumadinha, de
sapato”, afirma.
MÉTODO DE RECUPERAÇÃO
“Não existem criaturas irrecuperáveis, mas métodos
inadequados”. É assim que Maria iniciou seu trabalho de conclusão de curso de
Serviço Social pela PUC-RS. Publicado originalmente em 1948, a pesquisa sobre o
sistema carcerário foi republicada em 2013 pela Ajuris (Associação dos Juízes
do Rio Grande do Sul), em um seminário em sua homenagem.
No trabalho, Maria descreve a “metodologia” de
tratamento dos presos, baseada em confiança, diálogo e respeito. Maria aponta
entre as principais “causas de delinquência” os “lares desajustados” e
recomenda como tratamento preventivo o “amparo à família, reajustamento do lar
e assistência à infância”.
Depois de gastar toda a herança nos cuidados com os
presos, Maria apelava para o filho. “Volta e meio ela pedia Cr$ 100, Cr$ 200.
Ela dizia: ‘Tenho que pagar a luz, o aluguel, ou vão cortar a água do anjo’.
Ela sabe que, se o preso não tiver estrutura dentro de casa, vai procurar o
crime”, conta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário